Todas vezes que entrei em um casino, num bordel ou numa igreja eu sentia a mesma sensação. Um sentimento vago, um certo desejo, mas ao mesmo tempo uma forte necessidade, que era o que realmente me movia para dentro. Não que eu queira comparar os 3 lugares, de forma alguma estou querendo traçar um paralelo, são apenas relatos que quero fazer de minhas emoções aflorando pelos poros, fazendo de minha pele um caderno das minhas historias e sentimentos ao longo dos anos.
Eu ia para o bordel para conseguir amor, um amor que minhas entranhas necessitavam tão cruelmente, que me torturavam, como se fossem um organismo estranho ao meu corpo. Entranhas estas, que me magoavam sem dó. As semanas se passavam, talvez meses, porem chegava um momento que era impossível continuar me submetendo àquelas dores, aquela corrosão interna. Sucumbia então a tal necessidade, e me arrastava feito um animal sedento por sangue. Até meu coração se aquietava, pois, meus desejos também seriam saciados la dentro. Mas não era só isto. Pois uma necessidade é sempre mãe ou pai de outra. Assim como um vício perturba a cabeça, ao ser saciado, ele se vinga em um orgão do corpo, com algum tipo de flagelo. Não existe compaixão num vício. Ele tem vida própria, e não tem um ponto fraco, pois nós somos seu ponto fraco.
Dias e dias se passaram, as refeições estão em falta. Aquele jantar com a família, ou aqueles amigos já não existem mais. Acordando alquebrado todo dia, espreito pelo meu apartamento, ando como se não estivesse em casa, tentado silenciar qualquer ruído para não ser notado por vizinhos ou transeuntes, luzes apagadas, cortinas de trapos tentando esconder o máximo que poderiam, tudo tem uma fresta. Me desloco até meu cofre, sob o assoalho, uma pequena caixa de sapatos imunda. Pequena como meus pés o são. Abro-a e recolho algumas notas largadas. Estou muito fraco para trabalhar em alguma coisa, e então reservo certas economias de tempos em tempos. Vou para a jogatina, chamo de casino, mas não passa de um porão, todo tipo de jogos ilegais por lá me aguarda. Busco sempre o grande premio, aquele que vai me trazer paz para sempre.
Percebo uma enorme porta aberta, vejo uma seta brilhante apontando la para dentro. Esta seta flutua diante de meus olhos, pisca, irradia luz suficiente para que eu aperte as pálpebras, tentar proteger os olhos, mas o coração coitado, é aquele mais desprotegido e vulnerável. Corro para dentro. Busco um canto dentre tantos bancos centrais, a figura de Jesus crucificado em meio ao fundo do salão. Aquele homem de preto, sozinho caminha de um lado a outro, como se eu nem estivesse ali. Mas tudo bem, não confio nele mesmo, entrei aqui pois preciso da minha dose de fé. Salvação, paz para minha consciência perturbada. Me recolho todo, aperto minhas mãos fechadas uma contra a outra, começo a suar e rezar como um demente culpado, buscando ser absolvido num tribunal, este que me persegue, todos os membros do juri estão dentro de mim, nunca esqueço, nem por um dia, tudo que devo ao universo. Mas por segundos consigo expandir minha alma, e tudo parece mais calmo. Não pensem que entrei para pedir sorte no jogo, entro em diversas igrejas pelas cidades que vivo ou vivi, pois começo a queimar por dentro. A solução passageira é esta, sigo tentando, sigo buscando, mesmo que as escuras, de olhos fechados, tateando. Usando do pouco vocabulário que sei aqui dentro, tentando achar o modo correto de pedir perdão.
Estes 3 desejos regem minha vida, eles são baseados em necessidades. E eu nunca consigo resolvê-los por completo e seguir o caminho da vida. Talvez porque eu ataque eles como um animal selvagem ataca sua presa. Todo dia é um nova luta, caçar, se esconder, lidar com a sorte e inúmeros fatores que podem complicar o alcance ao objetivo. Um leão come aquilo que pode quando tem a carne em sua frente, não sabe nem onde nem quando vai encontrar o próximo alimento. Eu sigo um preceito parecido, e não luto todo dia, vou me deixando enfraquecer, com isto os problemas tendem a crescer, tendem ao infinito muitas vezes e eu sinto que pode estar chegando a fatídica hora final.
Dentro do bordel, diversas vezes me apaixonei, de diferentes formas senti o amor sendo irradiado dentro do meu corpo, e na maioria das vezes, era tão expansível que se estendia pelos limites corporais. Eu chegava na porta do lugar e respirava fundo, como num exercício, pensava na criatura a qual direcionava meu amor e podia tocá-la com meu sentimento. As ondas voltavam até mim e eu sabia, infalivelmente, que ela estava lá dentro em serviço aquela noite. Eu esperaria até o dia raiar só para estar alguns minutos com ela. Não importava a quantidade de clientes que com ela estivera, ou estariam ainda, eu permanecia mudo, quieto, estático num canto esperando a minha vez. Ao entrar no quarto com a escolhida por meu coração eu ficava sentindo diversos tipos de perfumes, me sentia agraciado por aquele momento. Porem não haviam forças maiores que me fizessem dar continuidade a este desejo, faze-lo crescer e durar. Era questão de alguns meses e eu me sentia tão apático que gerava uma distância enorme entre os 2 seres queridos, eu e a simples donzela da vida, que então o vaso ficava seco para qualquer rosa florescer.
A necessidade vital da fome me chamava e eu buscava um casino. Um ambiente que no geral é parecido com qualquer bordel, esfumaçado, com aromas diversos, na sua maioria, repelentes ao meu olfato. Porém dentro do bordel, por algumas vezes eu me sentia absorto em bons sentimentos. Dentro dos casinos apenas a ganancia predominava. Muitas vezes eu entrava robótico, depositava moedinhas em máquinas, esperando pelo milagre da multiplicação. Noutras, sentava em mesas, totalmente letárgico. Talvez esta falta de expressão muscular me ajudasse a ganhar uns trocos no poquer, era difícil alguem ler minhas reações, meu rosto era praticamente uma tela em branco. O dinheiro era ralo, era suado, não pelo esforço, mas pelo ranço de todos aqueles companheiros de jogo. Minha aparência não despertava qualquer inveja, o pouco que eu recebia servia me para comer e beber. Alias, logo após sair com uma quantia razoável para o mês, eu ia primeiro beber, buscava 2 coisas neste ato: anestesiar e esquecer. Comprava no supermercado garrafas de álcool barato. As primeiras doses me deixavam anestesiado, não tinha erro quanto a isso. Mas eu ia alem, buscando causar uma amnesia para aquela noite. Sem dúvida eu gostaria de apagar todo meu passado, mas realmente, esquecia no máximo os fatos da noite. Rolava para casa, inchado, exaurido de sentimentos e forças. Me largava no colchão de palha que ficava no chão do meu apartamento, ligava o rádio e dormia sem ouvir sequer uma canção. Acordava com ele, o rádio, gritando qualquer notícia em minhas orelhas e como um cacoete adquirido por anos, buscava as notas salvas em minhas meias, que ainda estavam calçadas em meus pés. Guardava as notinhas suadas, não pelo esforço do trabalho, mas pelo calor e liquido exalantes em meus pés. As punha dentro de meu cofre. Fazia isto ainda de olhos fechados, pois meu corpo ainda não acordara. Alguns sentidos estavas dormentes, outros já se faziam presentes, usava apenas o tato e a audição nesta rápida tarefa. Então tentava sintonizar alguma música agradável no rádio. Alguma que pudesse servir de oração aos amores apertados em meu latente coração.
Dizem que a casa de Deus está sempre de portas abertas, pois então eu nunca visitei Deus. Neste dia, busquei como busquei a seta brilhante apontando para dentro de altas portas, e os malditos estavam mantendo as tais portas fechadas. Imaginei um complô contra mim, não queriam mais um farrapo imundo de oficina mecânica dentro de seus suntuosos ambientes banhados a ouro, regados a vinho, buffets enormes de comilanças para aqueles ditos nobres senhores que apenas rezam em toda sua segurança, enquanto imundos como eu infectam as ruas. Eu via em seus rostos o desprezo, eu era a doença das ruas. Eu sei que se eu cuspir em qualquer sarjeta estarei espalhando a doença dos meus pulmões pelas ruas. Mas praqueles pomposos padres o simples fato de eu respirar e tocar em coisas era profano. Eu não queria lutar, não queria ter razão sobre nada nesta vida, então entrava discretamente, fazia força, mão contra mão, buscando tornar o mais rápido possível minha estadia ali dentro da casa que tentaram dar a Deus.
Meus desejos e necessidades, eram 3, eu não os considerava os mesmos, no fundo se tratavam de 6 sentimentos distintos, mas na prática, funcionavam como apenas 3. As vezes me sentia sortudo por tal casamento, tudo que eu quero eu necessito. Mas eu nunca consegui mantê-los comigo, durando, perseverando e alcançando novos níveis. Eu ia sempre em busca de um novo animal dentro de mim. Caçar, latir, uivar, miar, rastejar, morder, me contorcer de dor e prazer, essa era a linha da minha vida de extremos, da dor ao êxtase. Eu estava viciado nesse modo de vida, e parecia que só assim era possível viver.
A carência fazia minha frequência cardíaca aumentar, eu fazia de tudo para me segurar, para tentar me livrar deste desejo, mas era também uma necessidade básica de vida. Sentimentos confusos, amor que anula dor, carinho que anula carência, um olhar de alguem que te faz existir no mundo, que quebra minha solidão. As mulheres da vida entendiam e se entregavam a mim, talvez sentissem em mim um sentimento um pouco mais nobre do que os habituais clientes, aqueles que gozam britas dentro delas. Eu conseguia dar-lhes algo mais, mesmo que vomitado de uma vez, havia um certo calor além do humano carnal, havia uma onda no ar, batendo pelas paredes, reverberando de coração em coração. Ali dentro a minha necessidade encontrava o desejo. A carência lidava com o amor, de mãos dadas, os sentimentos se harmonizavam como música, o pacto estava selado por fluidos corporais. Me deitava e via uma vida toda pela frente, com continuidade, como na maioria das famílias do mundo. Eu via o filme, que nunca se tornara realidade.
Dentro do casino eu aspirava o grande prêmio, aquele que me daria condições de ser livre. Ter um lar justo e seguro, ter dinheiro, mesmo que ralo, mas diário para comer e beber. Eu estaria livre da obrigação, estaria flutuando pelas calçadas, os buracos não me fariam tropeçar mais. Compraria um tênis macio, andaria com uma postura ereta. Não teria que me esconder em becos, esperando achar a sorte. Não sentiria mais a fraqueza e o corpo moído pelas entranhas gritando por alimento. Saberia dosar a comida e seguir vivendo, me alongando. Com as pálpebras mais abertas, reparando melhor nas coisas do mundo. Mas a necessidade gritava, e me tirava a concentração, mecanicamente eu buscava o jogo, pensando em sanar as dores de fome e sede. Esquecia totalmente meu desejo de uma vida em paz.
As marteladas do meu tribunal eram como uma obra sem fim, nunca todos os pregos estavam no lugar, e os membros do juri eram juizes diretamente, cada um por si, batiam e batiam seus martelos e marretas. O tambores eram meus tímpanos. Ruído incessante. O volume estava sempre aumentando, até que eu nada podia mais ouvir que viesse de fora. E tudo ficava sério, eu perdia meu equilíbrio para caminhar, e titubeante procurava por uma seta verde, indicando a porta. Dentro da igreja eu suava, encarava todas minhas culpas, meus erros, meus crimes contra o universo. Buscava paz para tudo isto, este era meu desejo. Mas a necessidade falava mais alto, eu precisa calar os tambores, ou pelo menos tentar reduzir a intensidade de sons dentro da minha cabeça. Eu sabia que uma vida de fé seria como ouvir música tocando, troca-se o juri por uma filarmônica. Mas fé em que? Não conhecia outro mundo além deste que vivo, nem sei mais se posso chamar de vida. Parece mais que tropeço, vivo ralado, rolo por barrancos, barranco acima, pois pra baixo seria muito fácil.
Anos se passaram, assim como previ, nenhum anjo veio me salvar, não ganhei aquela grana que duraria "para sempre" e muito menos vivi o amor com alguém fora de um bordel.
Meu corpo gasto, até o ultimo orgão, todos trabalhando ainda apenas porque não saberiam viver de outro modo, mas esgotados, cada batimento, cada bombada de sangue parecia ser a última. Cada piscada de olhos, buscando lubrificar, cada tremida de nervo, parecia dar um ultimo adeus a vida como conhecemos aqui neste mundo.
Então me dei conta de algo muito importante. Deus, o que será de mim? Pois eu não aprendi nada novo. Digo, eu cresci, de algum modo tive habilidades para sobreviver em meio ao caos. Sabia me esquivar, sabia caçar, sabia amar uma mulher sobre a cama. Mas vivi disso por anos a fio, repeti a dose todos os dias. Mas não aprendi nada novo. Não derrotei os obstáculos, eu seguia pulando todo dia. Sabia sempre onde eles estariam, mas não buscava meio de vencê-los de uma vez por todas e quem sabe encontrar novos desafios. Então eu não precisava de ninguém mais, eu estava morrendo, este corpo iria desaparecer. Pele e osso virariam poeria rapidamente, o vento faria o serviço.
Mas a pergunta final era, para onde irei, visto que sei que existe algo mais dentro de mim que não é feito de carne, que não precisa de sangue, que nem mesmo precisa da massa cinzenta. Meus desejos, que viveram dentro de meu coração, eles não eram parte do meu corpo, eram parte de algo muito maior e valioso para nossa raça.
Não demorou muito para a resposta vir, e veio por mim mesmo, afinal eu soube a vida toda, que quem vive sempre fazendo as mesmas coisas, vai encontrar os mesmo resultados a frente. E eu soube de imediato que se realmente eu tivesse outra chance mais adiante, eu voltaria para este mundo, para continuar de onde parei. Pois ele é o que eu conheço melhor, uma vida toda andando em círculos.
Uma paz interna irradiou-se dentro de mim, uma compaixão enorme reverberou em meu tórax e minha consciência se calou. Fui me embora, dei um pequeno passo naquele momento, mas foi o maior de toda minha vida, foi aquele que me levou mais longe, e que me tomou menos tempo para chegar mais perto de alcançar meus 3 desejos, e largar de vez as 3 necessidades, meu vícios.
22 janeiro, 2010
Meu 3 desejos, necessidades
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