11 janeiro, 2010

Estado do Espírito

Parecia que alguém brincava com a atmosfera esta noite. Cheguei em casa me sentindo estranhamente bem e ao abrir a janela as cores contrastavam mais do que o normal aos meus olhos. Meus sentidos pareciam aguçados como se eu estivesse em contato com alguém mais, que estava ali diante de meus olhos, mas estes não podiam detectar ainda qualquer presença. Meus poros no entanto estavam atentos e davam sinais de algo envolvendo minha aura.

Então comecei a conversar comigo mesmo, e consegui sentir pessoas falando dentro de minha cabeça. Muitas frases ditas em diferentes épocas de minha vida começaram a reverberar dentro da caixa craniana. E era como ler um livro, ou ver um vídeo clipe musicado com as melhores cenas de um bom filme.

De certo modo comecei a me sentir em outro lugar do mundo, não diria outro país, mas como se estivesse em outra dimensão, outro estado de espírito.

Fico imaginando se alguém pudesse estar ao meu lado agora, talvez achasse que estou cego, que meus olhos nada veem, o que seria uma prudente observação, pois eu estava acenando para os meus amigos que estão atrás da cortina e não poderia perceber se um falcão pousasse em meu telhado.

Esqueci de descrever onde estou, como é o lugar em que me encontro neste momento. Sempre que chego em casa, vou ao meu quarto. Para alcançá-lo devo subir um lance de escadas, sigo reto pelo portal da porta e viro a esquerda, onde tem a janela, geralmente fechada quando chego em casa, juntamente com as cortinas de cor crua. A luz que irradia através dita meus próximos movimentos, algumas vezes passo direto feito um zumbi, vou ao banheiro, que fica atrás do quarto, e depois me largo na cama. Mas neste dia a luz estava quebrando meu sono e eu me sentindo enclausurado. Abri bem as folhas da janela e removi as cortinas para os lados.

Debrucei-me sobre a madeira que serve de apoio ante o telhado de baixo, e busquei os céus com meus olhos a princípio. Realmente estavam dizendo algo por cores, e pelo canto do suave vento. E bem na hora que sorvi o ar fresco e este estava rodopiando em meus pulmões pude sentir que estavam eles bem próximos de mim.

Desde sempre, chegar em casa sozinho no meio da madruga me gerava certa consternação. Me sentia pequeno sob todas as camadas da atmosfera. Mas nesse dia eu me sentia completo, não havia ninguém ao meu lado, fisicamente falando, mas eu tinha aquelas vozes ressonantes, e tinha um céu com cores vivas no horizonte.

Será que estava vivendo de mentiras esperançosas criadas por minha própria cabeça? Seria isso um tipo de droga que fui aperfeiçoando com os anos e agora eu mesmo me dopava? Os melhores anos de minha vida, e quem eu sempre encontro, o céu.

Mas dessa vez ele estava se movendo, talvez fosse uma dessas estranhas noites de verão que ocorrem depois de um longo dia quente, depois da tempestade de final de tarde, o ar noturno fica bem fresco, me fazendo esquecer que no próximo dia estarei suando ao acordar. Toda essa sensação me anestesiava, e me levava para outro estado de espírito.

Eles sentiram que eu me aquietava e puderem ir chegando mais perto, alguns estavam logo atrás da bananeira. Outros eram tão suaves, tão dissolvidos no ar, que eu já os respirava para dentro de mim.

Claro que neste momento eu não tinha toda essa percepção, eu tinha noção, era como ouvir um russo falando, sabendo que palavras estavam sendo articuladas, mas do som delas eu ainda não conseguia tirar discernimento do assunto, da mensagem que estava sendo proposta. Porem, os fatos a seguir narram o real encontro e talvez uma plausível explicação.

Minha visão era como uma tela, ou melhor, era como se eu pudesse ver em camadas, no fundo eu tinha meu quarto, mas no primeiro plano, como num papel manteiga de opacidade bem reduzida projetava-se a imagem de outrem me chamando com as mãos para que eu me deitasse na cama e amansasse os poros e nervos.

Deitei, sentindo um tipo de êxtase etéreo, piscava meus olhos, sentia meu corpo funcionando feito uma máquina bem regulada e lubrificada. Minha respiração estava bem calma e silenciosa, era como se o ar apenas passasse por mim, sem que os orgão tivessem muito trabalho, o vento soprava singelo adentrando ao quarto. Lembrei me de uma bela música e seu nome, uma frase em latim me explicava o poder da vida no universo. "Spiritus flat ubi vult", ou melhor, "o vento sopra onde quer".

Pensar nisso me deu uma enorme paz no coração, fui me entregando mais a vida e aos fatos. Então me levantei, tive a sensação de que muitas pessoas passavam em frente a minha casa e quis ver quem eram eles. Me desloquei até a sala de TV, ainda no segundo pavimento de minha casa, de lá eu teria a visão que estava procurando. Mas eram tantas pessoas passando, e numa velocidade que nem existe, como quando colocamos uma bicicleta de ponta cabeça e rodamos seus pneus, o movimento em certa velocidade se confunde de direção, pra trás e pra frente existem no mesmo instante. Então não notei formas definidas, pudê apenas sentir seus aromas e notar seus rastros, e eles irradiavam uma luz vermelha alaranjada, tornando desta cor todos os objetos em volta. Mas eles eram luz pura, amarelos, vivos, pacíficos e seguiam de casa em casa, dando esse passe energético enquanto os corpos de todos os moradores repousam e apenas seus espíritos vão haurindo a força que ao acordar não podem se recordar de onde veio.

Um certa faixa de luz começou a se deslocar em direção da entrada da minha casa, como um rio desaguando em uma lagoa, lá estava um filete de luz se aproximando da minha garagem. Comecei a sentir um forte frio na barriga, e a coluna quis se encurvar mais que podia. Os pelos ouriçados por braços e pernas e eu parecia tomar uma suave descarga elétrica. Aos poucos a tensão foi saindo, fui sentindo uma certa massagem por todo o corpo, e toda esta loucura parecia mais fácil de se conceber de repente.

Aos poucos a garagem se encheu de luz, e esta começou a invadir a casa primeiramente por frestas, depois atravessou a porta feita de densa madeira, como se fosse um líquido, adentrou ao meu ambiente seguro. Eu estava na sala de cima, e a luz na sala abaixo, mas a claridade já era forte e radiante, não demorou para começar a subir a escada, assim como uma cachoeira sobe a montanha, ao invés de cair pela rochas. O bater de meu coração estava calmo como o gado geralmente é ao pastar, meu olhos se fixaram nos movimentos da luz. Assim como a garagem escurecia, a escada se iluminava e uma torre de luz se formou ao cume, no segundo andar da casa.

Parou de se mover lateralmente e começou a girar em torno de si mesma, ou como um rodamoinho e aos poucos o ser de luz tomou forma, foi mostrando seu rosto, tentando definir-se como forma humana. O processo deve ter durado uns 10 ou 15 segundos, mas a passos curtos e rápidos, parecia não sair do lugar, morfando, criando, refletindo meu rosto na sua luz.

Tomei um baita susto, e assim o ser de luz ficou, congelado, olhos arregalados, assim como os meus estavam, pouco importando com a dor da claridade que feria minha íris. Não conseguia nem piscar diante de tal fenômeno. E com muita calma ele acenou e eu entendi que deveria me deitar novamente a cama. Assim lentamente pus pé frente a pé, tentando não errar o movimento básico que se chama caminhar, e deitei suavemente.

Oh luz, que queres de mim, pensei, ao deitar-me, e senti seu toque entre meus olhos. Deixou um feixe sobre minha testa, como se fosse um bastão. Eu sentia meu pensamentos sendo sugados para fora de meu cérebro, eu podia vê-los saindo em forma de imagens e sons. Era como aquelas brincadeiras que tínhamos na escola, onde o nome dos desenhos de animais, objetos e outros formavam palavras ao lermos a frase. Eu via meu quarto escuro e uma suave névoa sobre minha cabeça.

Não fechei meus olhos, mas a visão agora era controlada por este ser de luz, e eu não estava mais apreciando meu quarto e sim um tipo de espiral que deveria ser o a forma em que meus pensamentos eram carregados para outro corpo. Sim, estava certo, pois apareceu outro ser diante de minha visão, este sob um enorme capacete, onde deveria estar receptando tudo que era meu.

Existia outro aparelho, 2 esferas girando com extrema velocidade, a menor em cima recebia tudo que era sentimento, entendia, separava e mandava armazenar na esfera maior inferior. Eram prateadas e pareciam energizadas por uns feixes dourados de luz.

Sentindo-me extremamente leve eu via que tinha voltado ao quarto, me sentia seguro, tudo que acontecia comigo era ligeiro e eu percebi que as explicações estavam sendo dadas durante todo o processo. Meu cérebro parecia agora ser capaz de entender um monte de novas ideias com uma facilidade enorme. Era como se eu estivesse vazio de tudo que não presta, e pudesse gastar toda minha vida novamente. Mas ao mesmo tempo toda a bagagem acumulada estava comigo, eu não tinha esquecido nada, não estava emburrecendo. Era eu, o mesmo jarro, porem com espaço de sobra pra me encher de um novo suco mais saboroso.

Aproveitando o ensejo e o contato, eu tentei me comunicar, mas nada perguntei, apenas comecei a obter algumas respostas automáticas, mas totalmente direcionadas a minha pessoa.

Não eram palavras, mas sensações que tentava traduzir inutilmente, elas vinham como arrepios, ou lufadas de ar, outras como sangue novo em minha veias, sendo injetado, outras como lampejos em meu cranio. Toda essa atividade cerebral me cansou, e de uma maneira, que meu corpo precisava descansar, forçando um desmaio.

Avistei 3 seres flutuantes próximos de mim, alçavam voo, e mais ao longe se uniram e juntos foram polvilhando partículas de luz no ar enquanto se despediam. Pude ver ao meu lado uma pata sumindo, e a luz ficando mais fraca. Desta vez ela não escorreu, apenas se dissipou como se formasse uma solução com o oxigênio. E foi enfraquecendo e sumindo até que eu adormeci e o breu tomou conta da minha vista.

Acordei. Um luz penetrava por minhas pálpebras, porem era a mesma luz do sol que vejo todo dia entrando pelas janelas. Uma luz que me fere muito mais do que as luzes de ontem.

Ainda zonzo, busquei pela memória tudo aquilo, sentimentos confusos, parecidos com um sonho arrebatador, daqueles que correm na velocidade da luz e despejam infinitas cores, imagens e sentidos que ao acordar fazem a cabeça latejar, ou como um motor de carro super aquecido, vai esfriando e estalando.

Eu tentava lembrar dos fatos, e narrar tudo novamente para mim mesmo. Porem mais importante que tudo, comecei a pensar na vida e novas formas de associação. Lembrei de alguns brinquedos que eu tive, e como eu queria que eles ficassem sempre novos e intactos, mas com os anos iam se deteriorando. Riscos, peças quebradas, todo o brilho de partes transparentes agora opacas. E aqueles seres de luz tinham alguma relação comigo. Uma frase estava guardada dentro de mim e saiu como que ditada, pronunciei em voz alta:

- Sua alma não é como um brinquedo, ela se renova a cada instante, a cada ano, a cada século, o brilho tende a aumentar, as formas riscadas e estragadas vão sumindo e essas camadas se tornam parte de um passado remoto, que você apenas irá se lembrar através das visitas que fizeres aos seus irmãos.

A alma nasce em água barrenta. Cheia de sedimentos, somos um copo desta água. Durante a vida vamos aprendendo a purificar, nos livramos dos detritos, passando por diversas vezes em filtros e vamos buscando clarear as idéias, até o dia, em que estaremos puros e cristalinos. Nada teremos mais a esconder. Não mais seremos agressivos a outrem.

Portanto não temas, apenas viva cuidado de tudo que tens como sempre fizeste e eu te encontro lá, acima de tudo, um dia.

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